segunda-feira, 13 de maio de 2013

O Sertão Não É Só Uma Palavra

Por Ivan Schmidt

Resenha de No sertão das palavras, leitura de Grande Sertão: Veredas – Jayro Schmidt


Ilustração de Jayro Schmidt


Mais um estudo analítico sobre o monumento literário que é Grande Sertão: Veredas já não tem o sabor da novidade, pois tantos foram os críticos que se aventuraram a percorrer os dificultosos caminhos trilhados por Joca Ramiro, Medeiro Vaz, Zé Bebelo e Hermógenes, entre outros, cujos encontros e desencontros foram narrados pelo jagunço Riobaldo Tatarana, que tudo e nada sabia ao mesmo tempo, mas cuja voz foi usada por João Guimarães Rosa para a construção do grande romance brasileiro, sem dúvida, um dos mais importantes da literatura universal no século passado.  

Pois o livro de Jayro Schmidt, se não é uma novidade, tem o mérito de confirmar o interesse interminável da crítica pelo universo rosiano, oferecendo uma pesquisa esclarecedora sobre as múltiplas visões do magnífico rapsodo dos encantamentos dos Gerais, perpassando uma a uma as diferenciações da paisagem física e humana do sertão. A multiplicidade dos nomes, plantas, bichos e lugares – assim como foi para João Guimarães Rosa – constituiu para Jayro o arcabouço sobre o qual se municiou para escrever um culto ensaio de interpretação lingüística e literária, descobrindo e apontando, quem sabe, pela primeira vez, algumas facetas que outros críticos ainda não tinham tido a ventura de prospectar no aparente emaranhado produzido pelo genial mineiro nascido em Cordisburgo.

Inventor de palavras como nenhum outro escritor da língua portuguesa, Rosa encontra tantos anos depois da publicação do romance e de sua morte, um critico que à semelhança dos antecessores, sem deslustrar o trabalho de nenhum deles ou deixar-se embair pela vaidade de suplantá-los, aporta uma contribuição que, em primeiro lugar, a si própria se exibe com a limpidez oportuna da sintaxe fluente no esforço de demarcar para antigos, atuais e futuros leitores do Grande Sertão, as nuanças, desvãos, quebradas e artimanhas duma prosa entrecortada pelo desvendamento de um segredo que se insinua por toda a estória, mas que apenas se mostra por inteiro nas últimas páginas.

Na oportuna observação de Olgária Matos, ao escrever seu volumoso romance, João Guimarães Rosa o fez como se estivesse vendo aquelas coisas pela primeira vez (ele que conhecia em pessoa os encantos do sertão), valendo-se de neologismos, anglicismos, indianismos e galicismos, “para tudo dizer em língua nova, embora inserindo o sertão, as palavras ‘bem de casa’, em sua babel”.

Por sua vez, Leda Tenório da Motta, num belo estudo sobre GSV nos informa que ao desenhar a trama tortuosa do dilema de Riobaldo, que se debate entre o existe não existe do diabo e a questão de contar ou não contar, Rosa acabou legando à literatura “um relato maciço, comparável em estrutura aos romances de cavalaria”, no que está judiciosamente coberta de razão.

De maneira apropriada Jayro deu a seu ensaio um sugestivo título (No sertão das palavras), inegável em sua referência explícita ao romance analisado, identificando na especulação o termo angular no pensamento de Guimarães Rosa, que atribuiu a Riobaldo a função de agir como portador das distorções gramaticais e fonéticas da escrita. O jagunço, diz Jayro, é uma espécie de “aparato sensível a tudo que procede em torno dele, isto é, nele, pois vai armazenando o que sabe e não sabe, mais o que não sabe”.

Resultado final cuidadosamente desentranhado de suas muitas leituras em literatura, filosofia e história, o livro escrito por Jayro Schmidt sob o imenso dossel da inspiração criadora de Guimarães Rosa, vai repontando as alusões e elisões do drama existencial descrito pelo romancista. Tudo (ou quase tudo) gira em torno dos jagunços Riobaldo e Reinaldo, cujo nome secreto era Diadorim, somente revelado ao primeiro para uso em conversas particulares entre ambos, quando afastados dos demais componentes do bando. O nome verdadeiro de Diadorim era Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, nascida a 11 de setembro da era de 1800 e tantos que, no entanto, jamais revelou a alguém sua condição feminina a fim de vingar a morte do pai – Joca Ramiro – assassinado por Hermógenes, jagunço rival de quem se dizia ter partes com o Demo.

Filho desse mesmo sertão, Riobaldo não sabia quem era seu pai (Diadorim, a mãe) e cedo tomou o rumo da jagunçagem sob o comando de Medeiro Vaz, onde pouco depois voltou a cruzar com Reinaldo, o menino que conhecera anos antes num atemorizante passeio de canoa. Sempre próximos, lembra Jayro que “Diadorim é quem guiava Riobaldo no sertão dos fatos, dos feitos e dos ditos, para um desfecho comovente: Deodorina desencantada e estendida na nudez da morte”, ante o desespero daquele personagem fáustico duma “história de amor incomparável, não em termos de narrativa ou propriedade literária, mas pela originalidade do conceito: a paixão entre Riobaldo e Diadorim. Riobaldo relata o encantamento desse amor e a contrariedade de amar um homem, que, no final da narração, descobre que é uma mulher perfeita, formosa e morta”.

João Guimarães Rosa, no intervalo das letras e missões diplomáticas, apreciava o contato pessoal com tropeiros e demais viajantes do imenso Norte. Era descendente de uma família de criadores de gado radicada desde o século XVIII nas imediações das grutas calcárias de Cordisburgo, onde veio a nascer. É famosa uma dessas participações em comitiva de tropeiros pelas veredas de Minas, nos anos 50 do século passado, retratada em ampla reportagem realizada pela revista O Cruzeiro, então editada no Rio de Janeiro. Aí aprendia com os caboclos a discernir o pio das aves, o ruído dos animais, o nome das plantas e dos córregos e rios que cruzavam o território de Minas, Goiás, Bahia e Maranhão, enfim, o grande sertão.

A travessia guiada por esse sertão de palavras é fascinante, na medida que a ousadia ficcional do autor, na corajosa definição de Jayro Schmidt, “colocou Riobaldo, bruto-polido, ao lado dos melhores personagens que se conhece, desde Shakespeare. Os melhores personagens Harold Bloom definiu: são os que pensam bem demais como Hamlet, Darl, entre outros. Guimarães Rosa reverenciava Dante, como qualquer poeta de envergadura. E ‘mestre Guima’ foi mais tinhoso do que ele: Dante divinizou Beatriz na morte e, Riobaldo, Diadorim em vida. Ele só não sabia que ele era ela”.

Lendo ou relendo Grande Sertão: Veredas, a dificuldade será concordar com a exclamação recorrente de Guimarães Rosa: “Nonada”. Não é nada. Ora, pois, pois: o romance de Rosa é tudo!


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