segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SONHO MACABRO

Por Hamilton Alves


Fotograma de Limite, filme de Mário Peixoto


Silveira de Souza e Hugo Mund Jr. são grandes amigos e transitam pela existência com interesse comum pela literatura e pelas artes em geral.
Mas o que tem a ver os dois com esta crônica?
Na última madrugada, tive um sonho angustiante com ambos, com os quais, apesar de minha amizade, nunca experimentei essa sensação esquisita no mundo do faz-de-conta.
Estávamos em algum lugar difuso, uma festa, uma reunião de pessoas. A certa hora, Silveira saiu do meio de todos e embarafustou em direção de uma área livre. Lá encontrou um pequeno cemitério, abriu uma cova, coberta com uma laje (há de se perguntar onde encontrou forças para tanto, franzino como é). Não contente, resolveu também abrir o caixão, onde um corpo se encontrava já em adiantada fase de decomposição.
Foi então que Silveira, sem mais nem menos, ele que é, em geral, circunspecto e caladão, decidiu-se a proferir um discurso em altos brados, evocando o morto:
– Em vida, dizia ele, erguendo os braços para o alto, o que fizeste, imbecil?
Diante disso, estupefatos, amigos se acercaram, muito curiosos, em torno de Silveira.
– Ele enlouqueceu – disse uma pessoa entre as demais. Mas disse-o à boca pequena, como se tivesse receio de desencadear um alvoroço.
E o Silveira continuava impávido em sua catilinária:
– O que fazes aí dentro, imbecil?
Aberto o caixão, via-se lá dentro o morto dilacerado. O fato causava um impacto grande nos presentes, uns se arrepiavam, outros torciam o nariz e se mostravam escandalizados, enquanto o Silveira, mais entusiasmado, mandava brasa:
– Por que não te ergues daí, imbecil?
A certa hora, duas ou três pessoas agarraram o Silveira e o levaram para o interior da casa, e tiveram que fazê-lo não à força, porque ele, resoluto como estava, não se deixou levar facilmente.
Foi então que o Hugo, vestido a caráter, em estilo carnavalesco, com uma fantasia que lhe cobria desde a cabeça até os pés, com uma calda enorme atrás, houve por bem de por-se adiante de outro túmulo aberto e a fazer imprecações, mais ou menos idênticas às do Silveira.
Também ele teve que ser levado dali.
Mas quando era assim reconduzido ao local em que se encontrava um grande número de pessoas, todas mais ou menos perplexas diante dos acontecimentos, Hugo, resistente ainda às pressões, disse:
– É o futuro!... É o futuro!...
Coberto de suor, despertei, ergui-me, fui até a janela do quarto, olhei lá fora. Notei que ainda era escuro, passava uma carreta barulhenta conduzida por um cavalo; um homem açoitava-o com um chicote e promovia na madrugada uma certa algazarra.
O que é que poderiam significar as palavras do Hugo, quando fora afastado do túmulo aberto, com um cadáver à mostra, dizendo: “é o futuro!... é o futuro!...
Qual sentido desse sonho macabro, já que, freudianamente, pode-se fazer qualquer conclusão, ainda que meio louca, sobre os sonhos?
Durante muito tempo, refleti sobre isso, em vão, claro.


(Crônica extraída de O cuco e o apocalipse, Bernúncia Editora, 2003)


quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Contempla aquele que sobre as mãos...

Poema de Érico Max Müller





Contempla aquele que sobre as mãos
reparte o pó de estrelas lívidas;
sobre a boca possui rochas gêmeas.
E sobre seus pés marcha o peso das ondas,
sobre seus olhos treme a chuva
das nuvens sacrificadas à tarde.

É um deus vencido
e traz o mundo num gesto sem alcance.


Poema extraído de Um anjo morto na encosta, (Edições Ultra, Blumenau, 1964), exemplar localizado em um sebo do Rio de Janeiro por Roger Müller, irmão do poeta, e autografado a Antônio Olinto.





terça-feira, 24 de setembro de 2013

ABSTRACTION-CRÉATION

Da Redação


                   Theo van Doesburg



Associação fundada em Paris, em 1911, por Vantongerloo Herbin, tendo as adesões de Antoine Pevsner, Naum Gabo, Piet Mondrian e Ben Nicholson. Representou um princípio não-figurativo, abstrato, através da fusão de pintura e escultura com procedências no emprego de vários materiais por Pablo Picasso e de valores do “Manifesto de Arte Concreta”, de Theo van Doesburg. Exposições como Abstraction Création e Art Non-figurativ, expandiram o abstracionismo da associação, cujo nome foi explicado por seus integrantes: “Abstração, porque certos artistas chegaram à concepção de não-figuração pela abstração progressiva das formas da natureza. Criação, porque outros artistas atingiram diretamente a não-figuração através de uma concepção de ordem puramente geométrica ou do emprego exclusivo de elementos comumente chamados abstratos, tais como círculos, planos, barras, linhas etc”. A associação, em 1934, encerrou as suas atividades e influenciou a formação de outros grupos com as mesmas qualidades artísticas: Unit One, em Londres, 1933; Aliança, de Max Bill, em Zurique, 1936; e AAA-American Abstrat Artists, em Nova Iorque, 1936.



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

ÉRICO MAX MÜLLER, POETA

Por Jayro Schmidt




Nos últimos meses tenho procurado reunir documentos de e em torno de Érico Max Müller, poeta nascido no interior de São Paulo, Santa Cruz do Rio Pardo*. Viveu por quase uma década em Florianópolis e participou da Catequese Poética, iniciada em 1964, ano de publicação de seu primeiro livro, Um anjo morto na encosta, seguido por Ao corpo circunscrito, de 1966. Érico, em Florianópolis, colaborou com poemas e artigos no jornal Ilha, uma raridade editorial, como também no jornal O Estado.
Por ter localizado Ao corpo circunscrito na Biblioteca da UFSC, escrevi um ensaio, O poeta esquecido, que foi publicado no caderno Cultura, do Diário Catarinense. Menciono isso porque, depois de algum tempo, recebi e-mail de Roger Müller, irmão do poeta, agradecendo a façanha. E assim uma porta se abriu no sentido de reunir o que for possível em torno do poeta, cuja magnitude me proponho a não deixar ficar no esquecimento.
Roger Müller, que mora em Curitiba e é professor universitário, aderiu ao meu propósito e tem me enviado raridades como esta foto de Érico aos 32 anos, e com um comentário que faz parte da história doméstica, cuja imagem comprova: “diziam ele ser parecido com um rabino, inclusive rabinos o paravam pelo que me informaram”.
Érico, na época que viveu em Florianópolis, não ostentava esta barba, porém sua fisionomia não deixava de transmitir certa aura mística, como transmitem seus poemas.
Por falar nisso, mostrei a foto do poeta às moças que trabalham comigo e que dignificam a graça humana, Luciana e Aline, perguntando a elas o que poderia ter sido ele. Aline disse que foi “baterista”, e Luciana, que acertou em cheio, que foi “escritor”.
De qualquer maneira, a resposta de Aline não está longe do que acontecia nos recitais da Catequese Poética e nos pessoais de Érico. Ele tinha uma impostação de voz que, como diz esse nome, ia do mais brando ao mais agudo – de batidas sonoras, vamos dizer – e de tal maneira que a sua voz se parecia com a voz dos poemas ditos de memória ou com verificações espaçadas em páginas soltas que deixava sobre um engradado de madeira, no qual tremulava a luz de uma vela.
Este era o cenário do poeta, esta foi a vida do poeta.


* Nota da redação: Corrigido o que foi informado no dia da publicação desse post, Érico viveu mas não nasceu em Blumenau. (R.S.)


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

MALLARMÉ ORIGINAL

Da Redação





Cópia tipográfica, trecho de Um lance de dados jamais abolirá o acaso, de Stéphanne Mallarmé, poeta francês do sécuo 19. O poema, pela natureza radical de sua composição de um barco que aderna, atrai e repele, contrai inspiração e expiração. O trecho, que segue de uma página para outra como em todo o poema, diz em contrapontos:

Para ler a tradução, clique na imagem para ampliar


(Tradução de Lísia Portilla Saudades e Jayro Schmidt e concepção gráfica de R. Schmidt)


O TEMPO PASSA – VIRGINIA WOOLF

Por Jayro Schmidt




Em recente publicação da Autêntica, O tempo passa, temos uma nova tradução de Virginia Woolf realizada por Tomaz Tadeu, também tradutor de Mallarmé, rigoroso e detalhista quanto à natureza dos textos, fornecendo ao leitor precisas e preciosas notas. O tempo passa é a segunda de três partes de Ao farol.

A edição tem um efeito gráfico primoroso graças às ilustrações de Jesper Christian Christiansen, pinturas creditadas apenas no final do livro, no rol de direitos autorais e na ficha técnica, quando também deveria constar na folha de rosto, pois, sem as suas imagens o livro poderia se render ao habitual.

Esses detalhes são importantes, e mais ainda a polpa do livro, a narrativa de Virginia Woolf, que inicia com uma força arrebatadora, mas que, a partir do sétimo capítulo, começa a declinar até o final, no capítulo nono. A desproporção é gritante. Nitidamente se observa que tudo procede de noemas que, depois, a autora reconheceu que não teria como ajustar esta parte com as demais. E assim Virginia Woolf recuou de dificuldades que superou na primeira versão. Outro fator agravou a sua insegurança quanto ao resultado final porque o papa de então, Roger Fry, não se sentiu satisfeito.

Aqui se coloca uma questão crítica, o texto como um ato problemático da escrita que, desta maneira, atinge novas formas e provoca reações. A principal, em relação à literatura de Virginia Woolf, foi a de Arnold Bennett, um escritor limitado, que não chegou a pintar por fora das molduras. Mas o tempo literário passou para ela quando o curinga irlandês Joyce publicou Ulysses.

A torre irlandesa caiu na cabeça de Virginia Woolf, deixando-a sem pai nem mãe, mais sem o Pai, enquanto essa instituição falida é um dos focos que Joyce desfocou, aliás, logo na primeira parte de Ulysses, no segundo episódio, o de Nestor na cena da escola, a história como arte e com a técnica do catecismo:

– Os caminhos do Criador não são os nossos, o senhor Deasy disse. Toda a história humana se conduz a um único fim grandioso, a manifestação de Deus.
Stephen esticou o polegar para a janela, dizendo:
– Isso é Deus.
Urra! Ei! Vhrrvhi!
– O quê? o senhor Deasy perguntou.
– Um grito na rua, Stephen respondeu, dando de ombros.



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

NÚMEROS

Por Mariza Terezinha Martins



Desenho de René Magritte



“Ás” (Um Deus?)
Um sol
Uma lua
Dois
Dois pólos, Polo Norte e Polo Sul.
Branco e preto. Dia e noite. Bem e mal. Yin e Yang. Homem e mulher. Opostos que se atraem, de dois sai o três.
Três
Três cores básicas: amarelo, vermelho e azul.
Santíssima trindade: pai, filho e espírito santo. Três lados de um triângulo.
Os três mosqueteiros Athos, Porthos, Aramis e D'Artagnan que na verdade eram quatro.
Quatro
São as estações do ano: outono, inverno, primavera e verão.
Os pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste.
Os quatro cavaleiros do apocalipse: peste, guerra, fome e morte. Também quatro são os elementos da natureza: terra, fogo água e ar.
Cinco
O espírito da natureza, o sagrado. Quinta essência que complementa os quatro elementos.
Cinco são as letras que compõem a palavra C I N C O.
E também cinco são os continentes da terra. Cinco são os sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato, os quais se ligam originando um novo, de aprimoramento da alma, mediunidade, intuição, o sexto sentido.
Seis
Seis são as pontas da estrela de Davi, símbolo do judaísmo, o mesmo que diz que Deus fez o mundo em seis dias e descansou no sétimo.
Sete
Pelos sete mares se conhece as sete maravilhas do mundo, as notas musicais são sete, sete são os pecados capitais, jogo dos sete erros, tudo guardado a sete chaves, a sete palmos pelos sete anões. O cinema é a sétima arte depois da pintura, arquitetura, música, escultura, literatura e teatro. E dizem que a fotografia que a tudo registra é a oitava arte.
Oito
Oito é considerado o número da sorte chinês. Oito de lado é o símbolo do infinito, assim como infinitas são as estrelas no céu, que são mais velhas que o próprio tempo. Nossa estrela, o Sol, tem oito planetas girando ao seu redor: Mercúrio, Terra, Marte, Júpiter, Vênus, Saturno, Urano e Netuno, antigamente eram nove, mas como Plutão é pequeno em relação aos outros, passou a ser considerado um planeta anão.
Nove
A prova dos noves é uma forma de verificar erros nas operações aritméticas. Nove são os meses de uma gestação humana. Nove também são os dedos das mãos do ex-presidente Lula.
Dez
Os gregos e Platão, chamavam dez de um número perfeito, porque o número de dedos é dez. Decálogo significa dez palavras. Estas palavras resumem a Lei, dada por Deus ao povo de Israel, no contexto da Aliança, por meio de Moisés. Os dez mandamentos traça para o povo eleito e para cada um em particular, o caminho de uma vida liberta da escravidão do pecado.
Onze
Onze de setembro (!?).
Doze
Melhor pular para o número doze, porque doze são os meses do ano, os signos do zodíaco, e os apóstolos também, Jesus Cristo seria o número treze, portanto.
Treze
Treze são as cartas de um baralho. O baralho possui 52 cartas, distribuídas em 4 grupos chamados de naipes, os quais possuem 13 cartas de valores numéricos diferentes. Os valores numéricos vão de 2 a 10, além de um “Ás”, que corresponde a 1, um valete (representado pela letra J, vale 11), uma Rainha (letra Q, vale 12) e um Rei (letra K, vale 13).
Um Ás, um Deus? 



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

POLITICAGEM

Da Redação

gravura de Antonio Silva


O pintor Vincent van Gogh, numa de suas cartas, disse que para ele era mais importante estudar um talo de capim do que, dentre outras coisas, a política de Bismark, que unificou a Alemanha com o que se conhece desde Justiniano: Do ut des, “Dou para que me dês”. Em 1878, num discurso Bismark afirmou: “Em todas as negociações políticas, o “do ut des” é uma coisa que está na base, mesmo quando não se gosta de falar disso com decência”. Entenderam, não? A base das negociações é a corrupção, o que hoje é popularizado como “poder de barganha”. E todos vão para o brejo, menos os que manipulam a “coisa pública”. 


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

MÍNIMAS

Fotografias de Gill Konell







ABSTRACIONISMO

Da Redação



Pintura abstrata de kandinsky


Movimento artístico europeu, a partir do início do século 20, com repercussão em todo o Ocidente. O Abstracionismo é uma expressão que ultrapassa a representação do mundo exterior, concebendo a arte com formas puras, abstratas ou não figuradas. Estas formas são absolutas, emancipadas do aparente, isto é, das formas relativas. O Abstracionismo apresenta períodos e aspectos diversificados, às vezes divergentes, sintetizados em duas correntes fundamentais: a abstração geométrica e a abstração lírica. Ambas as correntes, respectivamente, evidenciam princípios racionais e emocionais. As principais versões do Abstracionismo são o Neoplasticismo, o Elementarismo, o Suprematismo, o Purismo, o Construtivismo, o Raionismo, o Vorticismo, o Informalismo e o Tachismo. O Abstracionismo provocou especulações teóricas que abrangeram a espiritualidade, a música, o caos, os ideogramas orientais e a matemática. Proclamou uma poética capaz de colocar o artista acima das angústias provocadas pelos conflitos da vida moderna. Os principais expoentes foram Wassily Kandinsky, Piet Mondrian, Paul Klee e Kasimir Malevitch, também os primeiros teóricos, juntamente com Wilhelm Worringer, pensador alemão que em 1908 publicou Abstraktion und Einfuhlung, Empatia e abstração. A teoria de Worringer diz que “a arte não consiste em abandonar-se às coisas do mundo exterior, mas em abstrair a coisa particular do mundo exterior à sua arbitrariedade e aparente causalidade, em eternizá-la na medida em que a aproximavam das formas abstratas para encontrar, assim, uma quietude em meio ao fluxo das aparências”. Em direção do abstracionismo, por outro lado, Kandinsky desenvolveu proposições em três gêneros distintos: “Impressão direta da natureza exterior, as impressões; expressões inconscientes e geralmente súbitas de processos de caráter interno e, portanto, de natureza interior, as improvisações; expressões formadas de modo idêntico, mas que são elaboradas lentamente, examinadas e longamente trabalhadas, as composições”. O abstracionismo, no escopo geral das vanguardas, radicalizou a mediação entre arte e utopia.



segunda-feira, 9 de setembro de 2013

LEGADO DA DIGNIDADE HUMANA

Por Ivan Schmidt*





O romancista norte-americano nascido em Chicago, Saul Bellow (1915-2005), filho de imigrantes judeus vindos de São Petersburgo para o Canadá e depois para os Estados Unidos, foi um dos autores preferidos da grande massa de leitores exigentes na segunda metade do século passado. Um de seus romances mais brilhantes -- O legado de Humboldt – está sendo relançado agora pela Companhia das Letras, em nova tradução de Rubens Figueiredo.
O lançamento desse romance deu-se em 1975 e, no ano seguinte, Bellow abiscoitava com todo o mérito o Premio Nobel de Literatura. Nos 30 anos mais produtivos da carreira iniciada com o lançamento de Por um fio (1944), em plena Segunda Guerra Mundial, ele escreveria também A vítima (1947), As aventuras de Augie March (1953), Aqui e agora (1956), Henderson, o rei da chuva (1959), Herzog (1964), O planeta do Sr. Sammler (1970) e Dezembro fatal (1982), entre outros volumes de contos, ensaios, memórias e relatos de viagem.
Os primeiros romances de Saul Bellow foram publicados no Brasil, em 1976, pela antiga Bloch, comandada pelo igualmente imigrante russo – Adolfo Bloch --, que deve ter sido aconselhado a editar os livros do norte-americano. É que nessa época Bellow já desfrutava do tratamento dispensado aos verdadeiramente grandes.
A consagração de Bellow veio na trilha aberta pela fertilíssima geração que tivera Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, John Steinbeck e Erskine Caldwell e, alguns anos antes William Faulkner, John dos Passos, Sherwood Anderson e Howard Fast, para citar uns poucos (e bons).
Com o aparecimento da Nova Fronteira, editora organizada pelo ex-governador da Guanabara, Carlos Lacerda, os romances seguintes de Bellow passaram a sair sob esse selo editorial, responsável pelo lançamento de renomados autores europeus e norte-americanos, assim como de notáveis brasileiros.
O legado de Humboldt é uma mistura de Shakespeare, Walt Whitman, Tolstoi, Dostoiévski e Henry James, entremeada por eruditas citações da filosofia grega, especialmente Platão, constantes alusões a Proust, Kafka, Joyce e outros mestres europeus, além da sombra  marcante de George Steiner, divulgador da antroposofia e da filosofia natural, na época, um dos temas que faziam a cabeça dos descolados de Greenwich Village, em Nova York, e a partir daí para todo o ocidente.
Bellow também voltava seu interesse para a psicanálise, ciência relativamente nova inventada por Freud, que exercia forte influência sobre norte-americanos abastados que se moviam, aos magotes, na direção dos divãs de afamados analistas, em busca de soluções para as esquisitices da cuca.
A saga inicia com o estupendo sucesso do poeta Von Humboldt Fleisher (o nome foi copiado por sua mãe de uma estátua do Central Park), cuja fama instantânea veio com a publicação de Baladas do arlequim. Humboldt tornou-se celebridade com presença obrigatória nas seções literárias dos principais jornais, com direito a fotos nas revistas Time e Newsweek. Choviam convites para palestras em universidades e, afinal, para a cátedra de literatura de Princeton, embora sua passagem aí tenha sido abreviada porque a essa altura o poeta passara a desenvolver séria inclinação para a loucura.
Na vida real, Bellow seria testemunha do processo de absorção de filhos e netos de imigrantes judeus pela sociedade e estilo de vida norte-americano ao encarnar a condição de romancista eminentemente judeu e, assim, narrador privilegiado dessa expressiva realidade antropológica (uma de suas paixões), ao transformar o microcosmo em macrocosmo, no dizer autorizado do historiador Eric Hobsbawn, mesmo tratando de outro contexto. Bellow projetou essa experiência nos personagens Von Humboldt Fleisher e Charles Citrine, ilustrando a crônica familiar dos tipos mais estereotipados de judeus de segunda e terceira geração já mergulhados nos negócios, nas profissões liberais, na vida intelectual ou artística e até no crime.
Um personagem de sua primeira narrativa havia declarado “sou judeu, filho de imigrantes”. E, décadas de sucesso depois, a mesma declaração voltou a aparecer na fala confiante de outro personagem: “Sou norte-americano, nascido em Chicago”.
Citrine era um jovem universitário do Meio Oeste que pensava e falava de literatura o dia todo. Pediu trinta dólares emprestados à namorada e comprou uma passagem da Greyhound com destino a Nova York numa viagem que durou 50 horas. Seu objetivo era conhecer Von Humboldt Fleisher, o poeta, de quem logo se tornou amigo inseparável. Na verdade, por sugestão de Humboldt, uma amizade que os transformaria em irmãos de sangue. E o penhor disso foi a troca de cheques em branco com o compromisso de que jamais fossem apresentados aos respectivos bancos, mesmo porque ambos estavam muito bem de vida, ganhando os tubos com livros, conferências, resenhas, matérias especiais em publicações chiques e, no caso de Citrine, com a caudalosa bilheteria da peça Von Trenck que ficou um ano inteiro em cartaz na Broadway.
Mais ou menos no final do primeiro terço do livro, Humboldt, depois de gradativa decadência na vida literária e uma série de detenções pela polícia e internamentos em hospitais de doentes mentais, acaba morrendo em abjeta miséria, abandonado pela mulher e pelos antigos admiradores, incluindo Citrine. Este já havia se mudado para Chicago, mas numa de suas visitas a Nova York viu Humboldt pela última vez, entre as ruas 47 e 48, meio escondido atrás dos carros estacionados no meio fio. O poeta envelhecido, barbudo e cabeludo, malvestido e sujo, mastigava um palito de pretzel.
Poucos dias depois Citrine abre o New York Times e se depara com o longo obituário do querido amigo que abandonara e com quem evitou falar, não por outros motivos senão pelas explosões de ciúme, cólera, inveja, maledicência e toda sorte de ofensas morais. A loucura de Humboldt foi algo tão estarrecedor que ele chegou a ser dispensado da cátedra em Princeton. Ninguém mais o suportava, a começar pela mulher Kathleen, que volta e meia aparecia com um olho roxo. Um dia pegou suas coisas e deu no pé.
Daí em diante Bellow passa a contar a história de Citrine, intelectual endinheirado pelo amplo sucesso dos livros e da peça Von Trenck, na verdade inspirada na vida de Humboldt, sendo os direitos logo vendidos para o cinema. A bilheteria chegava a render para o autor até oito mil dólares por semana, levando-o a lamentar que “o governo, que jamais manifestara interesse prévio por minha pessoa, exigiu imediatamente setenta por cento sobre o fruto do meu esforço criador”. E, algum tempo depois, uma conjura entre o advogado de sua ex-mulher, Denise e um juiz da vara das famílias, Urbanovich, “um ucraniano gordo e careca”, fez com que sua pequena fortuna fosse reduzida a míseros quatro mil dólares.
No capítulo rabos de saia Citrine era especialista. Desde a primeira namorada, Naomi Lutz, que subsidiou a viagem a Nova York, passaram por sua lábia além de Denise com quem se casou e teve duas filhas (Mary e Lish), em épocas diferentes ou ao mesmo tempo Demmie Vonghel, Doris Scheldt e Renata Koffrittz. A última era uma voluptuosa gata com a metade da idade de Citrine, que a descreveu com fino humor: “Estávamos agora no aeroporto Kennedy e, com seu chapéu incomparável e seu casaco comprido de camurça, sua echarpe da Hermès, suas botas elegantes, ela estava tão apta a ser mantida na privacidade e na discrição quanto a Torre de Pisa”.      
A parte final do romance é eletrizante porque o panorama cinzento e decadente da vida de Charles Citrine, assim como acontecera com seu amigo Humboldt, é atingido por uma virada enternecedora armada, anos antes, pelo louco de Greenwich Village.  Acostumado a vestir-se nos melhores e mais caros alfaiates e que só usava camisas feitas sob medida e gravatas de seda, chutado por Renata, Citrine vivia agora nos fundos duma pensão de terceira em Madri “na posição de um velho gagá que se comporta como um adolescente. Mais careca e enrugado do que nunca, e os cabelos brancos haviam começado a crescer, compridos e selvagens nas sobrancelhas”.
Foi no meio dessa barafunda que Citrine descobriu o legado de Humboldt. Um filme chamado Caldofredo, baseado num roteiro que ambos haviam escrito de brincadeira numas férias em Princeton, que lotava cinemas em Londres e Paris. O roteiro chegara às mãos dos produtores por lances fortuitos, mas Citrine podia provar a coautoria já que Humboldt tivera a astúcia de mandar pelo correio uma cópia para si mesmo. E o envelope foi guardado por um tio de Humboldt, a essa altura num asilo de velhos, até que Citrine foi buscá-lo entre outros papeis deixados pelo poeta.
Os advogados conseguiram uma boa indenização paga pelos produtores e foi com parte desse dinheiro que Citrine cumpriu a promessa feita ao velho tio de Humboldt. Dar a ele e à mãe, mesmo depois de muitos anos, um sepultamento digno. Afinal, o tio Waldemar tinha dito ao entregar os papeis: “Se este legado tiver algum valor, o primeiro dinheiro deveria ser empregado em desenterrar Humboldt e transferi-lo”.
A última coisa que Citrine viu do amigo foi o ataúde descendo e um pequeno guindaste, com um zumbido rouco, agarrando uma lousa de concreto para depositá-la em cima da caixa de concreto aberta. O diretor do funeral perguntou se alguém tinha uma oração a fazer e Citrine pensou com seus botões: “Ninguém parecia ter ou conhecer alguma”.

* Escritor e jornalista



SOB O VULCÃO

Da Redação





Malcolm Lowry, ficcionista inglês que esteve no mar e em vários países, com longa temporada no México, onde escreveu Sob o vulcão, obra de fissura em duplo sentido: da escrita e do álcool.



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

PINTURA METAFÍSICA

Da Redação




A pintura metafísica vale-se de um realismo formal para transcender os significados habituais, articulando-os como significantes através de analogias que beiram à poética latente nas imagens. De Chirico, pintor italiano do século passado, com a “nostalgia do infinito” levou às últimas conseqüências o metafísico, reivindicado pelos surrealistas como o precursor do “automatismo psíquico”. De Chirico, no entanto, mais tarde afirmou que a sua obra foi o resultado de uma longa meditação racional.



quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O NOME QUE LEVAS

Poema de Norberto L. Rozenfeld




Sobre o adeus, o amor e o depois...

Extraído do livro digital Sem Palavras, ilustrado por Braz Uzuelle.


NA MALHA

Fotografia de Márcio Henrique Martins




terça-feira, 3 de setembro de 2013

ACTION PAINTING

Da Redação


Jackson Pollock


Procedimento em pintura praticado a partir da Segunda Guerra Mundial pelo norte-americano Jackson Pollock, influenciando toda uma geração de artistas. Consiste em pintar com latas furadas, de onde escorrem as tintas. Max Ernst reivindicou a autoria da técnica também conhecida por projeção e dripping, gotejamento, nas soluções pictóricas do automatismo abstrato expressionista, destituído de qualquer aspecto simbólico. Action painting, termo adotado pelo crítico de arte Harold Rosenberg, é pintura de ação e afirma o ato de pintar, transformando o artista em atuante em função de sua movimentação física durante a realização da obra. Pollock, para intensificar a ação de pintar, estendia o suporte no chão, trabalhando em torno e sobre com o escorrimento da tinta. A Action painting, desta maneira, é um estado de percepção causal, no qual o artista encontra-se totalmente absorvido pelo ato de pintar. O que importa é a ação, como declarou Harold Rosenberg: “A tela começou a afigurar-se como uma arena na qual se age – mais do que um espaço no qual se reproduz, se reinventa, se analisa ou se expressa um objeto real ou imaginado”. A pintura de ação foi determinante nas elaborações expressionistas abstratas, informais e gestuais. A performance advém da atmosfera criada pelos artistas da ação de pintar.



segunda-feira, 2 de setembro de 2013

ABSTRAÇÃO GEOMÉTRICA

Da Redação


Pintura-objeto de Mondrian



É uma das duas correntes do abstracionismo contida na obra de Wassily Kandinsky, de Paul Klee e predominante na de Piet Mondrian com suas formas neoplasticistas, com enfoques semelhantes no suprematismo e no elementarismo, além de ter sido o princípio ordenador, construtivo e funcionalista da Bauhaus. A abstração geométrica caracteriza-se pela ordem e coesão de formas racionalizadas.