segunda-feira, 30 de setembro de 2013

SONHO MACABRO

Por Hamilton Alves


Fotograma de Limite, filme de Mário Peixoto


Silveira de Souza e Hugo Mund Jr. são grandes amigos e transitam pela existência com interesse comum pela literatura e pelas artes em geral.
Mas o que tem a ver os dois com esta crônica?
Na última madrugada, tive um sonho angustiante com ambos, com os quais, apesar de minha amizade, nunca experimentei essa sensação esquisita no mundo do faz-de-conta.
Estávamos em algum lugar difuso, uma festa, uma reunião de pessoas. A certa hora, Silveira saiu do meio de todos e embarafustou em direção de uma área livre. Lá encontrou um pequeno cemitério, abriu uma cova, coberta com uma laje (há de se perguntar onde encontrou forças para tanto, franzino como é). Não contente, resolveu também abrir o caixão, onde um corpo se encontrava já em adiantada fase de decomposição.
Foi então que Silveira, sem mais nem menos, ele que é, em geral, circunspecto e caladão, decidiu-se a proferir um discurso em altos brados, evocando o morto:
– Em vida, dizia ele, erguendo os braços para o alto, o que fizeste, imbecil?
Diante disso, estupefatos, amigos se acercaram, muito curiosos, em torno de Silveira.
– Ele enlouqueceu – disse uma pessoa entre as demais. Mas disse-o à boca pequena, como se tivesse receio de desencadear um alvoroço.
E o Silveira continuava impávido em sua catilinária:
– O que fazes aí dentro, imbecil?
Aberto o caixão, via-se lá dentro o morto dilacerado. O fato causava um impacto grande nos presentes, uns se arrepiavam, outros torciam o nariz e se mostravam escandalizados, enquanto o Silveira, mais entusiasmado, mandava brasa:
– Por que não te ergues daí, imbecil?
A certa hora, duas ou três pessoas agarraram o Silveira e o levaram para o interior da casa, e tiveram que fazê-lo não à força, porque ele, resoluto como estava, não se deixou levar facilmente.
Foi então que o Hugo, vestido a caráter, em estilo carnavalesco, com uma fantasia que lhe cobria desde a cabeça até os pés, com uma calda enorme atrás, houve por bem de por-se adiante de outro túmulo aberto e a fazer imprecações, mais ou menos idênticas às do Silveira.
Também ele teve que ser levado dali.
Mas quando era assim reconduzido ao local em que se encontrava um grande número de pessoas, todas mais ou menos perplexas diante dos acontecimentos, Hugo, resistente ainda às pressões, disse:
– É o futuro!... É o futuro!...
Coberto de suor, despertei, ergui-me, fui até a janela do quarto, olhei lá fora. Notei que ainda era escuro, passava uma carreta barulhenta conduzida por um cavalo; um homem açoitava-o com um chicote e promovia na madrugada uma certa algazarra.
O que é que poderiam significar as palavras do Hugo, quando fora afastado do túmulo aberto, com um cadáver à mostra, dizendo: “é o futuro!... é o futuro!...
Qual sentido desse sonho macabro, já que, freudianamente, pode-se fazer qualquer conclusão, ainda que meio louca, sobre os sonhos?
Durante muito tempo, refleti sobre isso, em vão, claro.


(Crônica extraída de O cuco e o apocalipse, Bernúncia Editora, 2003)


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